Esta resenha se propõe a apresentar as reflexões e avaliações elaboradas por Paulo Freire em seu ensaio Educação como Prática da Liberdade, em que o autor expõe o "Método" de Alfabetização de Adultos de maneira minuciosa, contextualizando historicamente a proposta e expondo seus pressupostos filosóficos e políticos.
Na introdução do livro, Weffort destaca as experiências do método na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1962, onde 300 trabalhadores rurais foram alfabetizados em 45 dias.
Entre junho de 1963 e março de 1964, desenvolveram-se cursos de capacitação de coordenadores em várias capitais dos estados. No início de 1964, estava prevista a instalação de 20.000 círculos de cultura para dois milhões de analfabetos. O Golpe Militar interrompeu os trabalhos e reprimiu toda a mobilização popular já conquistada. Paulo Freire ficou detido por 70 dias e depois foi exilado.
Weffort analisa que o Golpe de Estado teve entre seus resultados (e também entre seus objetivos), a desestruturação do que foi o maior esforço de democratização da cultura já realizado no Brasil. Apesar disso, ficou a semente que transcendeu os marcos do período e as próprias fronteiras do país.
Durante o período de exílio, Paulo Freire participa de diversos projetos desenvolvendo o Método de Alfabetização de Adultos e escreve algumas obras. É nesse momento que conclui o ensaio Educação como Prática da Liberdade.
O livro está organizado em quatro capítulos:
1. A Sociedade Brasileira em Transição - o autor apresenta sua interpretação a respeito das forças políticas que disputavam o poder no início da década de 1960;
2. Sociedade Fechada e Inexperiência Democrática - Para justificar sua avaliação sobre o Golpe de Estado, Paulo Freire resgata vários momentos da história do Brasil;
3. Educação Versus Massificação- o autor explica sua concepção pedagógica, contrapondo-se à pedagogia tradicional;
4. Educação e Conscientização - Paulo Freire mostra as experiências pedagógicas do Método de Alfabetização de Adultos, ocorridas no Brasil, no período pré-64.
Apresentaremos o essencial em cada capítulo, tendo o cuidado de preservar articulados os fundamentos filosóficos e políticos do autor, explicitados no livro que foi elaborado num determinado período histórico.
1. A sociedade brasileira em transição
Nesse capítulo, Paulo Freire apresenta sua interpretação sobre as forças políticas que disputavam o poder no início da década de 1960, esclarecendo inicialmente seus pressupostos filosóficos.
O autor define sua filosofia de caráter existencial. Para ele, existir ultrapassa viver, porque é mais do que estar no mundo. É estar nele e com ele. O existir é individual, contudo, só se realiza em relação com outros "existires". Transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar) são exclusividades do existir. Herdando a experiência adquirida, criando e recriando, integrando-se às condições de seu contexto, respondendo a seus desafios, objetivando-se a si próprio, discernindo, transcendendo, lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo - o da História e o da Cultura.
Paulo Freire entende que integração não é acomodação. A integração resulta da capacidade de ajustar-se à realidade acrescida da possibilidade de transformá-la, supondo uma opção, cuja nota fundamental é a criticidade. O homem integrado é um homem Sujeito. A adaptação é um conceito passivo.
À medida que cria, recria e decide, vão se transformando as épocas históricas. É também criando, recriando, decidindo, que o homem deve participar dessas épocas.
Quanto mais dinâmica uma época na gestação de seus temas próprios, tanto mais terá o homem de usar, como salienta Barbu, "cada vez mais funções intelectuais e cada vez menos funções puramente instintivas e emocionais"(Apud Freire, 1999, p. 52).
Mas, infelizmente, na opinião de Paulo Freire, o que se sente, dia a dia, é o homem simples esmagado, diminuído e acomodado, convertido em espectador, dirigido pelo poder dos mitos que forças sociais poderosas criam para ele. Mitos que, voltando-se contra ele, o destroem e aniquilam. É o homem tragicamente assustado, temendo a convivência autêntica e até duvidando de sua possibilidade, ao lado do medo da solidão, que se alonga como "medo da liberdade".
Vivia o Brasil, segundo o autor, a passagem de uma para outra época. Um tempo de trânsito. Sendo essa fase caracterizada por um elo entre uma época que se esvaziava e uma nova que ia se consubstanciando, tinha algo de alongamento e de adestramento. Neste embate entre os velhos e os novos temas ou a sua nova visão, a vitória destes ou desta não se faz facilmente e sem exigências de sacrifícios. O dinamismo do período de trânsito se fazia com idas e vindas, avanços e recuos que confundiam ainda mais o homem. E a cada recuo se lhe falta a capacidade de perceber o mistério de seu tempo, o que pode corresponder a uma trágica desesperança; um medo generalizado.
Paulo Freire afirma que o ponto de partida do nosso trânsito foi a sociedade fechada, comandada por um mercado externo, exportadora de matérias-primas e predatória; reflexa na sua economia e na sua cultura. Por isso, alienada, sem povo, "antidialogal". Com precária vida urbana e alarmantes índices de analfabetismo, portanto, atrasada.
Na avaliação do autor, essa sociedade rachou-se. Se ainda não era uma sociedade aberta, já não era, contudo, uma sociedade totalmente fechada. Parecia ser uma sociedade abrindo-se, correndo o risco, pelos possíveis recuos no trânsito, como o atual Golpe de Estado, de um retorno catastrófico ao fechamento.
As forças que estavam em disputa eram contraditórias, ressalta Paulo Freire, internas e externas. Umas estavam convencidas, em face da crescente pressão popular, de que a abertura da sociedade brasileira e sua autonomia se fariam em termos realmente pacíficos. Outras, a todo custo buscando reacionariamente entravar o avanço, pior ainda, recuar.
À medida que as contradições se aprofundavam entre os velhos e os novos temas, provocavam no homem brasileiro o surgimento de atitudes optativas. Estas, enfatiza o autor, só o são em termos autênticos, na proporção em que resultem de uma captação crítica do desafio. Feita a opção, pelo aprofundamento das contradições, a tendência era a da radicalização na opção.
Paulo Freire esclarece que o homem radical em sua opção não nega o direito ao outro de optar. Não pretende impor ao outro a sua opção. Dialoga sobre ela. Está convencido de seu acerto, mas respeita no outro o direito de também julgar-se certo. Tenta convencer e converter, e não esmagar o seu oponente. Tem o dever, contudo, por uma questão mesma de amor, de reagir à violência dos que lhe pretendam impor silêncio.
Jogado pela força das contradições, o homem brasileiro e até suas elites, salienta Freire, vinham assumindo posições sectárias e não apontavam para soluções radicais. A sectarização tem uma matriz preponderantemente emocional e acrítica. É arrogante, "antidialogal" e, por isso, "anticomunicativa". É reacionária, seja assumida por direitista ou esquerdista. O sectário não respeita a opção dos outros, pois pretende impor a sua opção. Daí a inclinação do sectário ao ativismo, que é a ação sem vigilância da reflexão. O radical, pelo contrário, rejeita o ativismo e sempre submete a ação à reflexão.
Para o sectário, ressalta o autor, o povo não conta e nem pesa, a não ser como suporte para seus fins, comparecendo ao processo ativistamente. Não pensa, pois pensam por ele. E é na condição de "protegido", de menor de idade, que é visto pelo sectário.
Paulo Freire compreende que, no período de trânsito, não vinha sendo dos radicais a supremacia, mas dos sectários, sobretudo de direita.
Retomando a concepção sobre a existência humana, para Freire, existir é um conceito dinâmico. Implica uma dialogação eterna do homem com o homem, deste com o mundo e do homem com o seu Criador. Aqui, Weffort assegura que sua "filiação existencial cristã" é explicitada. Essas definições adquirem importância para o entendimento do autor sobre os estágios da consciência.
Considera que a consciência transitiva é, num primeiro estado, preponderantemente ingênua - fase em que setores da sociedade brasileira estavam inseridos no contexto apresentado acima pelo autor - pela simplicidade na interpretação dos problemas, pela fragilidade na argumentação, por forte teor de emocionalidade, pela prática não propriamente do diálogo, mas da polêmica e pelas explicações mágicas. É a consciência do quase "homem massa".
Para o autor, a educação na fase de trânsito se fazia uma tarefa altamente importante, pois, através de uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, chegariam à transitividade crítica que se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas; pela substituição das explicações mágicas por princípios causais; por se dispor sempre a revisões; por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas; e na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações; por negar a transferência da responsabilidade; pela recusa de posições quietistas; por segurança na argumentação e pela prática do diálogo e não da polêmica.
Essa posição transitivamente crítica, afirma o autor, implica um retorno à matriz verdadeira da democracia. Daí ser essa transitividade crítica característica dos autênticos regimes democráticos e corresponder a formas de vida altamente permeáveis, interrogadoras, inquietas e dialogais, em oposição a formas de vida "mudas", quietas discursivas, das fases rígidas e militarmente autoritárias, como infelizmente estava sendo vivenciado por uma parcela significativa da sociedade brasileira, no período apresentado.
Paulo Freire entendia que o passo decisivo da consciência transitivo-ingênua para a transitivo-crítica passava, necessariamente, por um trabalho educativo crítico com esta destinação. Sendo que o crime dos que se engajavam era o de crerem no homem, cuja destinação não é coisificar-se, mas humanizar-se.
2. Sociedade fechada e inexperiência democrática
Para compreender os desdobramentos da fase de transição, Freire resgata, nesse capítulo, a história e as características do Brasil no período colonial e na fase do Império, esclarecendo a inexistência da participação popular, inclusive durante a passagem para a República.
O autor afirma não ser possível compreender nem a transição com seus avanços e recuos, nem entender o seu sentido anunciador, sem uma visão de ontem: a inexperiência democrática, isto é, ausência das condições necessárias à criação de um comportamento participante.
O Brasil nasceu e cresceu sem experiência de diálogo. O sentido marcante de nossa colonização, fortemente predatória, à base da exploração econômica e do trabalho escravo, inicialmente do nativo e posteriormente do africano. A "economia nacional", segundo Caio Prado, e com ela a nossa organização social, assentada numa larga base escravista, não comportava uma estrutura política democrática e popular (Apud Freire, 1999, p. 75).
Os colonizadores que vieram para o Brasil não tiveram intenção de criar uma civilização, pois, salienta Paulo Freire, interessava-lhes a exploração comercial da terra. Faltou aos colonos integração com a colônia. Marchou a colonização brasileira no sentido da grande propriedade, expressa no poderio dos donos de fazendas e de engenhos, que possuíam imensas terras. Não há realmente como pensar em dialogação com a estrutura do grande domínio, com o tipo de economia que o caracterizava, marcadamente autárquico e de clima ideal para o "antidiálogo".
Paulo Freire ressalta que a dialogação implica a responsabilidade social e política do homem. Implica um mínimo de consciência transitiva, que não se desenvolve nas condições oferecidas pelo grande domínio. Não há autogoverno sem dialogação, daí ter sido desconhecido, na história desse período, o autogoverno ou dele ter raras manifestações. Pelo contrário, o que predominou foi o mutismo do homem, foi a sua não-participação na solução dos problemas comuns, faltando-lhe consciência comunitária.
O que caracterizou esse período, desde o início, segundo Paulo Freire, foi o poder exacerbado, a que foi se associando sempre a submissão. Submissão de que decorria ajustamento, acomodação e não integração. No ajustamento, o homem não dialoga, não participa. Pelo contrário, acomoda-se a determinações que se superpõem a ele. As disposições mentais que se criaram nessas circunstâncias foram assim disposições mentais rigidamente autoritárias, acríticas. Essa foi a constante de toda a vida colonial. Os colonizados estavam esmagados pelo poder; poder dos senhores das terras, poder dos governadores - gerais, dos capitães-gerais, dos vice-reis, do capitão-mor.
O autor pontua alguns momentos históricos do Brasil colônia, reafirmando que seria sobre uma vasta inexperiência caracterizada por uma mentalidade feudal, sedimentada em uma estrutura econômica e social inteiramente colonial, que inaugurariam a tentativa de um estado formalmente democrático.
A democracia, adverte Paulo Freire, antes de ser uma forma política, é uma forma de vida, caracteriza-se sobretudo por forte dose de transitividade de consciência no comportamento do homem. Transitividade que não nasce nem se desenvolve a não ser dentro de certas condições em que o homem seja lançado ao debate, ao exame de seus problemas e dos problemas comuns, em que o homem participe.
De um modo geral, com algumas exceções, o povo ficava à margem dos acontecimentos. Foi assim na passagem do Brasil colônia para o Brasil império. O povo assistiu à proclamação da República "bestificado", como afirmou Aristides Lobo (Apud Freire, 1999, p. 89).
Mas foi exatamente neste século, assegura Paulo Freire, na década de 1920 a 1930, após a Primeira Grande Guerra, e mais enfaticamente depois da Segunda, que o surto de industrialização no Brasil, em certo sentido desordenado, recebeu seu grande impulso. E, com ele, houve um desenvolvimento crescente da urbanização.
As alterações ocorridas, salienta Fernando de Azevedo, teriam de refletir-se em toda a vida nacional. Juntar-se a outras tantas que se processavam no campo da cultura, das artes e da literatura. No campo das ciências, revelando uma nova inclinação: a da pesquisa; a da identificação com a realidade nacional; a do seu conhecimento; a da busca do planejamento, em substituição aos esquemas importados (apud Freire, 1999, p. 90).
O país começava a encontrar-se consigo mesmo, acrescenta Paulo Freire, seu povo emerso iniciava as suas experiências de participação. Tudo isto, porém, estava envolvido nos embates entre os velhos e os novos temas. A superação da inexperiência democrática por uma nova experiência: a da participação.
3. Educação versus massificação
Nesse capítulo, Freire faz a crítica à educação tradicional que, na época, permeia as práticas pedagógicas nas escolas. Aponta para a superação dessa situação, demonstrando a crença na pessoa humana e na sua capacidade de educar-se como sujeito histórico.
Preocupado em encontrar uma resposta no campo da pedagogia às condições da transição brasileira, Paulo Freire entendia que a contribuição a ser trazida pelo educador brasileiro à sua sociedade haveria de ser uma educação crítica e criticizadora; uma educação que tentasse a passagem da transitividade ingênua à transitividade crítica.
O autor entendia que seria necessária uma educação para a decisão, para a responsabilidade social e política. Educação que o colocasse em diálogo constante com o outro, que o predispusesse a constantes revisões, pois a democracia implica mudança. Os regimes democráticos são flexíveis, inquietos, por isso mesmo deve corresponder aos homens desse regime, maior flexibilidade de consciência.
Assim, salienta Paulo Freire, no clima cultural da fase de transição, uma educação conscientizadora contribuiria, na aprendizagem da democracia, com a própria existência desta. Daí a necessidade de uma educação corajosa.
Paulo Freire faz uma ressalva em relação às práticas pedagógicas que resistem à teoria. Identifica-se, assim, teoria com verbalismo. Esclarece que a teoria é necessária para uma educação crítica. Teoria esta que implica uma inserção na realidade. A educação escolar vigente não é teórica porque lhe falta o gosto da comprovação, da invenção e da pesquisa. Ela é verbosa, palavresca e não comunica.
O autor enfatiza que nada ou quase nada existe na educação formal que desenvolva no estudante o gosto da pesquisa e da constatação. O que implicaria o desenvolvimento da consciência transitivo-crítica. A sua perigosa superposição à realidade intensifica no estudante a sua consciência ingênua. A própria posição da escola, acalentada ela mesma pela sonoridade da palavra, pela memorização dos trechos, pela desvinculação da realidade, já é uma posição caracteristicamente ingênua. Essa manifestação oratória, quase sempre também sem profundidade, revela, antes de tudo, uma atitude mental. Revela ausência de permeabilidade característica da consciência crítica. E é precisamente a criticidade a nota fundamental da mentalidade democrática. Quanto menos criticidade entre os educadores, tanto mais ingenuamente tratam os problemas e discutem superficialmente os assuntos. Esta parecia ser uma das grandes características da educação escolar brasileira na sociedade fechada.
Somente de algum tempo para cá, analisa Paulo Freire, vem-se sentindo a preocupação em identificar-se com a realidade do país, em caráter sistemático. É o clima da transição. A oportunidade de uma intervenção pedagógica criticizadora estava posta, tendo como perspectiva a superação de posições reveladoras de descrença no educando, no seu poder de fazer, de trabalhar e de discutir. A democracia e a educação democrática se fundam ambas na crença no homem; na crença em que ele não só pode mas deve discutir os seus problemas: Os problemas de seu país, do seu continente e do mundo, de seu trabalho e da própria democracia.
Paulo Freire faz referência ao que considera dois empenhos, da mais alta importância, da educação universitária e pós-universitária, ocorridos no período. O do Instituto Superior de Estudos Brasileiros - ISEB - e o da Universidade de Brasília, ambos frustrados pelo Golpe Militar. Porém, a mensagem de ambos continua, como continua a tarefa do intelectual, da juventude brasileira e do povo brasileiro.
4. Educação e conscientização
Nesse último capítulo, Paulo Freire explica minuciosamente o Método de alfabetização de adultos. Cita diversos exemplos dessa experiência no Brasil, sendo que o Plano elaborado no Governo Goulart, em 1964, indicava a implementação de 20 mil círculos de Cultura em todo o país, conforme foi citado na apresentação da resenha. O golpe militar impediu a continuidade do método no território brasileiro. Porém, no exílio, Paulo Freire estabelece trabalhos da mesma natureza em diversos países.
No apêndice do Ensaio, o leitor terá oportunidade de constatar as experiências dessa educação popular no Brasil e, na nota final do texto, Paulo Freire apresenta um momento significativo do mesmo método que estava sendo desenvolvido numa região do Chile.
Paulo Freire mostra que na década de 1960, no Brasil, o número de crianças em idade escolar, sem escola, aproximava-se de 4.000.000, e o de analfabetos, a partir da faixa etária de 14 anos, 16.000.000.
O autor narra que há mais de 15 anos a equipe em que participava vinha acumulando experiência no campo da educação de adultos. As experiências mais recentes, de aproximadamente cinco anos, estavam sendo desenvolvidas pelo Movimento de Cultura Popular do Recife. Paulo Freire coordenava, naquele movimento, oProjeto de educação de adultos, através do qual foram lançadas duas instituições básicas de educação e de cultura popular: o Círculo de cultura e o centro de cultura. Os professores, que eram chamados de coordenadores, instituíam debates de grupos. A programação desses debates era oferecida pelos próprios grupos, através de entrevistas que os coordenadores mantinham com eles e de que resultava a enumeração de problemas que os alfabetizandos gostariam de debater. Esses assuntos, acrescidos de outros, eram tanto quanto possível esquematizados e, com auxílio de recursos visuais, apresentados aos grupos, sob a forma de diálogos.
Segundo Freire, os resultados eram surpreendentes. Numa das experiências, na vigésima primeira hora, um dos participantes escreveu com segurança: "Eu já estou espantado comigo mesmo". Vê-se que ninguém ignora tudo e ninguém tudo sabe.
Os coordenadores tiveram a colaboração, considerada valiosa por Paulo freire, da equipe do Serviço de Extensão Cultural da Universidade de Recife.
Estavam, assim, assegura Paulo Freire, tentando uma educação que lhes parecia a de que precisavam, identificada com as condições da realidade: realmente instrumental, porque integrada ao tempo e ao espaço, levando o homem a refletir sobre sua ontológica vocação de ser sujeito. Pensavam em criticizar o homem através do debate de situações desafiadoras, postas diante dos grupos- estas situações teriam de ser existenciais para eles.
Nas discussões sobre o conceito de cultura, o alfabetizando, afirma Paulo Freire, descobria que tanto ele como o letrado têm um ímpeto de criação e recriação, que cultura é a poesia dos poetas letrados de seu país, como também a poesia de seu cancioneiro popular, que cultura é toda criação humana. Durante os debates, um dos alfabetizando disse: "Faço sapatos, e descubro agora que tenho o mesmo valor do doutor que faz livros". "Sei que agora sou culto", afirmou um idoso camponês, "porque trabalho e trabalhando transformo o mundo".
A práxis pedagógica de Paulo Freire mostra, conforme afirma Weffort, o respeito à liberdade dos educandos - que nunca são chamados de analfabetos mas de alfabetizandos. Ao educador cabe apenas registrar fielmente o vocabulário dos participantes e selecionar algumas palavras básicas em termos de freqüência, relevância como significação vivida e tipo de complexidade fonêmica que apresentam. Estas palavras, de uso comum na linguagem do povo e carregadas de experiências vividas, são as palavras geradoras.
No apêndice do livro, entre os diversos momentos do processo da alfabetização de adultos, o autor registra as 17 palavras geradoras escolhidas do "universo vocabular" pesquisado no estado do Rio de Janeiro e que os educadores aplicariam, também, na Guanabara. Apresenta-se a seguir a primeira palavra geradora:
1) FAVELA - necessidades fundamentais:
a) Habitação
b) Alimentação
c) Vestuário
d) Saúde
e) Educação
Analisada a situação existencial em que é representada, em fotografia, o aspecto de uma favela em que se debate o problema da habitação, da alimentação, do vestuário, da saúde, da educação na favela e, mais ainda, em que se descobre a favela como situação problemática, passa-se à visualização da palavra apresentada com a sua vinculação semântica.
Em seguida: um slide apenas com a palavra FAVELA.
Logo depois: outro, com a palavra separada em sílabas: FA - VE - LA.
Após: a família fonêmica: FA - FE - FI - FO - FU.
Segue-se: VA - VE - VI - VO - VU.
Em outro slide: LA - LE - LI - LO - LU.
Agora, as três famílias:
FA - FE - FI - FO - FU
VA - VE - VI - VO - VU
Ficha da Descoberta
LA - LE - LI - LO - LU
O grupo de alfabetizandos começa a criar palavras com as combinações à sua disposição. Percebe-se que "a alfabetização e a conscientização jamais se separam", conforme enfatiza Weffort, na introdução do Ensaio.
Paulo Freire afirma ter testemunhado, no processo de alfabetização de adultos, vários alfabetizandos que, após a apropriação do mecanismo fonêmico, com a "ficha da descoberta", escreviam palavras com fonemas complexos que ainda não lhe haviam apresentado, chegando a elaborar frases que passavam a ser debatidas pelo grupo, discutindo-se a sua significação em face da realidade brasileira.
O autor acrescenta que isso se verificou em todas as experiências que passaram a ser feitas no país, e que se iam estender e aprofundar através do Programa Nacional de Alfabetização do Ministério de Educação e Cultura que coordenava, extinto depois do Golpe Militar.
No período do exílio, Paulo Freire esteve no Chile durante cinco anos, tempo suficiente para auxiliar uma equipe interdisciplinar do Departamento de Investigações da Divisão de Estudos da Consejería de Promoción Popular do Supremo Governo, de que faziam parte psiquiatras, antropólogos, psicólogos, urbanistas, economistas e sociólogos, que iniciavam as primeiras experiências, com resultados animadores, com o Método como instrumento de investigação psicossociológica. Numa das experiências, realizada em um conventillo (cortiço) de Santiago, uma mulher disse: "Gosto de discutir sobre isto", referindo-se a uma situação existencial apresentada, "porque vivo assim. Enquanto vivo, porém, não vejo. Agora, sim, observo como vivo".